Do Iraque ao Rio de Janeiro: normalização da barbárie é desafio para cobertura jornalística
Repórteres de guerra contam como a naturalização da violência pode estar mais próxima do que se imagina e refletem sobre o papel da imprensa nesse processo
Por Vinícius Munhoz | Edição: Leandro Melito | Foto: Marco Pinto
“Estou naturalizando essa barbárie, está se tornando algo normal”, disse o jornalista Yan Boechat sobre o seu trabalho na cobertura do conflito armado no Iraque em 2016. “A barbárie está na gente, o processo civilizatório é muito recente na história da humanidade”, reflete.
“A sensação é que você está em outra dimensão. Meu objetivo era sobreviver, eu não podia morrer aqui”, comenta o jornalista Hélio Campos Mello, que também cobriu o conflito armado no Iraque na década de 1990.
Os jornalistas compartilharam sua experiência na mesa Os brasileiros vão à guerra: relatos de duas gerações de correspondentes, com mediação de Sônia Bridi na 17ª edição do Congresso de Jornalismo Investigativo da Abraji.
Não normalizar as situações de violência é um desafio profissional não apenas para quem atua em conflitos armados no Oriente Médio, mas também para aqueles que cobrem situações de violência no Brasil.
Segundo Boechat, mesmo vivendo sob uma guerra declarada, a violência presente em algumas comunidades do Rio de Janeiro disputadas pelo tráfico, é algo que escapa do imaginável para os iraquianos. Enquanto atuava nessa cobertura, ele foi questionado por civis daquele país sobre a violência no Brasil: “Aquele filme Cidade de Deus, aquilo acontece mesmo?”, perguntaram.
“Violência em tempos de paz”, comentou Sônia Bridi, repórter da Rede Globo. A afirmação é importante para esclarecer que, apesar dos assustadores números de violência no Rio de Janeiro, o cenário não pode ser caracterizado como uma guerra. “É um caos, fruto da corrupção generalizada do uso político das forças de segurança nos últimos 40 anos”, afirmou a gestora de dados do aplicativo Fogo Cruzado, Cecília Oliveira, à Agência Pública.
Desde que Cláudio Castro assumiu como governador interino do Rio de Janeiro, no fim de agosto de 2020, 75 operações policiais foram orquestradas nas comunidades e ao menos 331 pessoas morreram. Três das cinco operações mais letais do estado aconteceram nesse período, com Jacarézinho, Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão.
A repórter da Rede Globo ressaltou que, em seu histórico de reportagens, o lugar que mais exigiu proteção foi o Rio de Janeiro. “Para você fazer uma reportagem em alguns lugares do Brasil, você precisa ir com colete a prova de balas. É extremamente revoltante a gente normalizar isso”, comenta. “As únicas vezes que usei colete a prova de balas foi no Brasil, no Rio de Janeiro cobrindo o tráfico”.
Para Yan Boechat, a imprensa tem responsabilidade em criar uma indignação seletiva em relação às mortes que são noticiadas. “Quando alguém é morto em Higienópolis, não há indignação”, ressalta ao mencionar o bairro nobre da região central de São Paulo (SP).
Esse tipo de comportamento, segundo ele, contribui para a normalização da violência em relação aos moradores de regiões periféricas. “De que você viver na favela, é parte intrínseca de seu potencial destino ser morto de forma violenta”.
Sônia Bridi acena no mesmo sentido, ao fazer referência a como são noticiadas as mortes em operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro. “É muito fácil a gente aceitar a frase da polícia de que morreram 18 traficantes”, ressalta Sônia.
A cobertura oficial do 17º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo é realizada por estudantes, recém-formados e jornalistas integrantes da Redação Laboratorial do Repórter do Futuro, da OBORÉ, sob coordenação do Conselho de Orientação Profissional e do núcleo coordenador do Projeto. Conta com o apoio institucional da Abraji, do Instituto de Pesquisa, Formação e Difusão em Políticas Públicas e Sociais (IPFD) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) – Oficina de Montevideo.